Laura Bohannan, uma antropologista Americana, escreveu em 1966 um curioso artigo sobre sua pesquisa etnográfica na população Tiv, na África Ocidental, "Shakespeare on the Bush" . No artigo ela questiona a própria certeza de que existe uma perspectiva única universal para as tragédias humanas como, por exemplo, a história de Hamlet. Para aqueles que não conhecem a história, Hamlet é um príncipe que após encontrar o fantasma de seu pai descobre que o verdadeiro regicida é o seu tio Claudius, novo rei e marido de sua mãe. Depois disso a história se desenrola em uma sequência de infortúnios que acabam com a morte de todos envolvidos, inclusive do protagonista.
Mas voltando para Laura Bohannan, seu artigo se passa na sua segunda experiência vivendo entre a população Tiv, em uma pequena e isolada aldeia na Nigéria. Laura aos poucos ganha a confiança daquele povo, até que em uma certa ocasião, o líder da tribo propõe-lhe um desafio, contar-lhes uma história do seu povo de origem. Esta foi então a oportunidade que Laura teve para provar sua teoria de que Hamlet era uma história universal e que seria entendida da mesma forma, qualquer que fosse a audiência.
- Nesse ponto vale uma reflexão sobre a pergunta que me levou a este artigo, quantas foram as vezes que nós administradores agimos como Laura, só por estarmos um pouco integrados a uma certa cultura empresarial temos certeza de que a entendemos plenamente, a ponto de acreditar que a simples apresentação de fatos e dados será suficiente para que todos nos entendam da mesma forma.
Laura então começou a contar a história de Shakespeare, mas foi logo surpreendida ao perceber que seus ouvintes aprovavam as atitudes de Claudius, especialmente de se casar com a rainha e cunhada para assumir o trono. A interpretação dos Tiv de que esta era a atitude correta, devia-se a certeza de que o irmão mais jovem tem a obrigação de cuidar da família e dos bens do falecido assumindo seu lugar.
Perdida em meio a perguntas e dúvida, Laura logo percebeu que teria desafios maiores do que imaginava, afinal seus ouvintes não conseguiam entender conceitos comuns para ela como fantasma, monogamia e herança. Foi então que Laura, sabiamente começou a utilizar de uma das técnicas mais importantes na condução de discussões em grupo, integrar à sua história elementos da vida cotidiana dos ouvintes, no caso deles, bruxas e seres que espreitam na floresta substituíram elementos como fantasma e alusões a demônios.
- Faço uma nova pausa para voltar ao mundo corporativo e refletir o quanto podemos aprender com isso, a nossa audiência será sempre diversificada e falar com metáforas que façam sentido para o seu público é uma técnica poderosa e digna de grandes oradores.
Mas voltando à África Ocidental, após as mudanças a história de Laura começou então a fluir até um momento em que Hamlet repreendeu sua mãe, matou sem querer o ancião Polonius e preparou-se para matar Claudius, seu tio e marido de sua mãe, um “pai” de acordo com os costumes daquela tribo. Foi então que o grande herói de Shakespeare, Príncipe Hamlet, se tornara um dos mais cruéis e horríveis vilãos para aqueles ouvintes. Fatores culturais são poderosos e Laura começava a aprender uma importante lição, não existem fatos ou histórias universais, bem ou mal, certo ou errado; tudo depende do ponto de vista de cada pessoa, de seu background, sua cultura e seus valores. Se todos os administradores conseguissem entender o poder disso, com certeza mudanças em empresas seriam muito melhor geridas e os seus danos causados pelas mudanças bem menores.
Para a tranquilidade de Shakespeare, a reputação de seu herói Hamlet foi salva pela certeza de que ele estava enfeitiçado, afinal, somente os bruxos deixariam um homem tão maluco a ponto de desonrar sua mãe, matar um ancião e querer matar seu padrasto.
É então que Laura, um pouco insatisfeita por ter perdido o controle de sua história, ouve uma das mais curiosas frases vindas do líder da tribo: “Você conta a história bem e nós estamos ouvindo. Porém, está claro que os anciões do seu país nunca lhe contaram o que esta história realmente significa”. Desse ponto em diante, o povo Tiv assume o controle da história do mais famoso escritor inglês e dá a ela contornos curiosos que fazem sentido à sua cultura e que com certeza orgulhariam o autor original. A história ganha vida nas mãos dos Tiv, Laertes torna-se assassino de Ophelia, Polonius responsável por sua própria morte e fatores como dinheiro, dívidas e apostas passam a ser determinantes para explicar o buracos e ambiguidades deixados por Shakespeare.
A história então termina como a original, todo mundo morto, e com uma certeza daquele povo de que tinham enfim ajudado Laura a compreender Shakespeare de uma forma que ela nunca imaginara.
Bibliografia: "Shakespeare in the Bush", Natural History 75 (1966), pp. 28–33.
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