quinta-feira, 2 de março de 2017

O que podemos aprender com “Shakespeare on the Bush”?


   Laura Bohannan, uma antropologista Americana, escreveu em 1966 um curioso artigo sobre sua pesquisa etnográfica na população Tiv, na África Ocidental, "Shakespeare on the Bush" . No artigo ela questiona a própria certeza de que existe uma perspectiva única universal para as tragédias humanas como, por exemplo, a história de Hamlet. Para aqueles que não conhecem a história, Hamlet é um príncipe que após encontrar o fantasma de seu pai descobre que o verdadeiro regicida é o seu tio Claudius, novo rei e marido de sua mãe. Depois disso a história se desenrola em uma sequência de infortúnios que acabam com a morte de todos envolvidos, inclusive do protagonista.

   Mas voltando para Laura Bohannan, seu artigo se passa na sua segunda experiência vivendo entre a população Tiv, em uma pequena e isolada aldeia na Nigéria. Laura aos poucos ganha a confiança daquele povo, até que em uma certa ocasião, o líder da tribo propõe-lhe um desafio, contar-lhes uma história do seu povo de origem. Esta foi então a oportunidade que Laura teve para provar sua teoria de que Hamlet era uma história universal e que seria entendida da mesma forma, qualquer que fosse a audiência.
  • Nesse ponto vale uma reflexão sobre a pergunta que me levou a este artigo, quantas foram as vezes que nós administradores agimos como Laura, só por estarmos um pouco integrados a uma certa cultura empresarial temos certeza de que a entendemos plenamente, a ponto de acreditar que a simples apresentação de fatos e dados será suficiente para que todos nos entendam da mesma forma.
   Laura então começou a contar a história de Shakespeare, mas foi logo surpreendida ao perceber que seus ouvintes aprovavam as atitudes de Claudius, especialmente de se casar com a rainha e cunhada para assumir o trono. A interpretação dos Tiv de que esta era a atitude correta, devia-se a certeza de que o irmão mais jovem tem a obrigação de cuidar da família e dos bens do falecido assumindo seu lugar.

   Perdida em meio a perguntas e dúvida, Laura logo percebeu que teria desafios maiores do que imaginava, afinal seus ouvintes não conseguiam entender conceitos comuns para ela como fantasma, monogamia e herança. Foi então que Laura, sabiamente começou a utilizar de uma das técnicas mais importantes na condução de discussões em grupo, integrar à sua história elementos da vida cotidiana dos ouvintes, no caso deles, bruxas e seres que espreitam na floresta substituíram elementos como fantasma e alusões a demônios.
  • Faço uma nova pausa para voltar ao mundo corporativo e refletir o quanto podemos aprender com isso, a nossa audiência será sempre diversificada e falar com metáforas que façam sentido para o seu público é uma técnica poderosa e digna de grandes oradores.
   Mas voltando à África Ocidental, após as mudanças a história de Laura começou então a fluir até um momento em que Hamlet repreendeu sua mãe, matou sem querer o ancião Polonius e preparou-se para matar Claudius, seu tio e marido de sua mãe, um “pai” de acordo com os costumes daquela tribo. Foi então que o grande herói de Shakespeare, Príncipe Hamlet, se tornara um dos mais cruéis e horríveis vilãos para aqueles ouvintes. Fatores culturais são poderosos e Laura começava a aprender uma importante lição, não existem fatos ou histórias universais, bem ou mal, certo ou errado; tudo depende do ponto de vista de cada pessoa, de seu background, sua cultura e seus valores. Se todos os administradores conseguissem entender o poder disso, com certeza mudanças em empresas seriam muito melhor geridas e os seus danos causados pelas mudanças bem menores.

   Para a tranquilidade de Shakespeare, a reputação de seu herói Hamlet foi salva pela certeza de que ele estava enfeitiçado, afinal, somente os bruxos deixariam um homem tão maluco a ponto de desonrar sua mãe, matar um ancião e querer matar seu padrasto.

   É então que Laura, um pouco insatisfeita por ter perdido o controle de sua história, ouve uma das mais curiosas frases vindas do líder da tribo: “Você conta a história bem e nós estamos ouvindo. Porém, está claro que os anciões do seu país nunca lhe contaram o que esta história realmente significa”. Desse ponto em diante, o povo Tiv assume o controle da história do mais famoso escritor inglês e dá a ela contornos curiosos que fazem sentido à sua cultura e que com certeza orgulhariam o autor original. A história ganha vida nas mãos dos Tiv, Laertes torna-se assassino de Ophelia, Polonius responsável por sua própria morte e fatores como dinheiro, dívidas e apostas passam a ser determinantes para explicar o buracos e ambiguidades deixados por Shakespeare.

   A história então termina como a original, todo mundo morto, e com uma certeza daquele povo de que tinham enfim ajudado Laura a compreender Shakespeare de uma forma que ela nunca imaginara.

Autor: Guilherme Amorim Ubiali

Artigo publicado originalmente no LinkedIn Guilherme Ubiali.

Bibliografia: "Shakespeare in the Bush", Natural History 75 (1966), pp. 28–33.

Nenhum comentário: